quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Deus me Livre da Minha Alma Gêmea

...Sonhou que caminhava tranquilamente pela praia de areia clara, quando viu um homem se aproximar. Sua imagem nem era muito incômoda, não era feio nem bonito, nariz fino, cabelo castanho.
Olharam-se. Ela, já incomodada. Ele, com um olhar aflitivamente doce estendeu as mãos em sua direção e disse “meu amor, por tantas vidas te procurei. Sou sua alma gêmea”. 
Ela achou aquilo muito brega. Ele parecia ter saído de um último capítulo de novela das seis, camisa branca de linho, gestos forçados.
Acabou por segurar as mãos do homem e passaram a viver juntos. Ela gostava de deitar às 23:30, ele também.
Ela gostava de dormir no escuro total, ele, igual. Ela fazia vitamina de papaia com leite e farelo de aveia pela manhã, ele amava. Ela estava ficando meio irritada com aquele homem sombra. Tudo igual, tudo igual.
Foram jantar, chegou a conta, R$ 113,50.
Ela disse “divide por dois, por favor”.
Ele disse “linda, eu não sei fazer conta, sou sua alma gêmea, esqueceu?”. Usaram a calculadora. 
Na volta, passaram na farmácia, ela pegou o remédio para a tireoide, ele pediu o mesmo, com a mesma dosagem. Chegaram em casa. Ela nunca conseguia abrir a tampa da garrafa para encher o copo d’água antes de dormir. Ele também não. Pegaram água da torneira. Deitaram-se na cama, colocaram um travesseiro entre os joelhos, viraram para o lado e apagaram as luminárias, quase como espelhos.
Dentro do sonho, ela sonhou que sonhava com uma grande bacia de jabuticabas. Sonhou que acordava do sonho e contava para ele, que, com os olhos brilhando, comemorava “eu também, meu amor, eu também! Não é incrível? Até os sonhos são os mesmos!”. Foi tomar seu banho fresco, e lá foi ele invadindo o box, porque dizia que ela temperava a água da maneira perfeita. Comemorava que ela tinha xampu anticaspa, porque ele sofria do mesmo mal.
Ela se sentiu sufocada, aquele homem, igual a ela, usurpando os hábitos dela, invadindo o espaço dela, que inferno! Queria gritar, queria tirá-lo de casa, queria... Acordou.
Olhou para o lado, estava sozinha. Respirou aliviada. Pesadelo.
Sentou-se na cama. Nada melhor do que estar sozinha. Havia dois meses que tinha se separado do Ricardo. Sabe como é, né? Eles se amavam, mas havia algumas incompatibilidades.
Romperam porque eles eram muito diferentes.
Ruth Manus- Colunista
Estadão

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